Por Pedro Szajnferber De Franco Carneiro*
A doação de alimentos, que deveria ser uma ponte natural entre o excesso e a necessidade, sempre encontrou no Brasil uma muralha de entraves jurídicos e regulatórios. O resultado tem sido um paradoxo doloroso: toneladas de alimentos desperdiçados de um lado, milhões de pessoas em insegurança alimentar de outro.
Com a sanção da Lei 15.224/2025, instituidora da Política Nacional de Combate à Perda e ao Desperdício de Alimentos, esse cenário ganha novos contornos. O texto legal traz avanços concretos — ainda que não definitivos — na tentativa de transformar a cultura da doação em prática corrente e segura.
O primeiro grande obstáculo sempre foi o medo da responsabilização. Empresas e estabelecimentos evitavam doar, receosos de que eventuais problemas sanitários resultassem em processos e indenizações. A nova lei busca resolver esse ponto ao limitar a responsabilidade civil do doador apenas a hipóteses de dolo. Isso significa que, na ausência de intenção deliberada de causar dano, a doação passa a ser juridicamente mais protegida. É um avanço relevante, mas que não elimina a possibilidade de litígios em situações nebulosas, como casos de negligência ou falhas de manipulação.
Outro entrave histórico são as normas sanitárias. O Brasil possui um sistema complexo, dividido entre Anvisa, MAPA e vigilâncias locais, que frequentemente aplicam às doações os mesmos padrões de comercialização. A lei reforça a exigência de observância às normas sanitárias, mas não resolve o problema de fundo: a falta de uniformidade e a tendência de fiscalizações locais criarem barreiras práticas. Para muitos doadores, o custo logístico e o risco de interpretações divergentes ainda pesam mais do que o gesto solidário.
No campo tributário, a legislação foi tímida. O projeto original previa benefícios fiscais significativos para incentivar supermercados e grandes redes a doar. Contudo, parte dessas disposições foi vetada. Assim, persiste a contradição: em muitos casos, descartar é mais barato do que doar. A ausência de incentivos robustos limita a escala que a política poderia alcançar.
Ainda assim, a lei trouxe inovações importantes. Uma delas é a autorização expressa para doações diretas ao consumidor final, desde que acompanhadas de atestado profissional que garanta a qualidade do alimento. Outra novidade é o Selo Doador de Alimentos, pensado para reconhecer e valorizar socialmente quem doa. A inclusão de alimentos “imperfeitos”, aqueles com danos estéticos, mas qualidade nutricional preservada, também representa uma mudança cultural relevante, que pode ampliar o alcance das doações.
O desafio da proteína animal
É justamente nos produtos de origem animal — carnes, laticínios, ovos e pescados — que os entraves jurídicos e regulatórios se tornam ainda mais severos. Esses alimentos estão sujeitos ao RIISPOA (Decreto 9.013/2017) e dependem de inspeção oficial para circularem. O selo de inspeção é condição inegociável, mesmo para fins de doação.
Além disso, esses produtos exigem cadeia de frio rigorosa, desde a produção até a entrega. O custo de manter veículos refrigerados, câmaras frias e monitoramento constante é elevado, e muitas entidades receptoras não possuem a infraestrutura necessária. Isso cria um gargalo: empresas têm excedentes, mas a logística de doar torna-se mais cara e arriscada do que descartar.
Outro ponto sensível é a validade curta desses produtos. Como a lei exige que estejam dentro do prazo de consumo, muitas vezes a margem para doação é mínima. Supermercados e frigoríficos frequentemente descartam alimentos exatamente porque restam poucos dias de validade, inviabilizando a doação em escala.
Mesmo a novidade da doação direta ao consumidor final enfrenta barreiras adicionais nesse setor. A exigência de atestado profissional significa, na prática, a presença de médico-veterinário habilitado para garantir a segurança dos alimentos de origem animal. Isso aumenta custos e reduz a agilidade.
Por fim, a ideia de aproveitar alimentos “imperfeitos” encontra pouco espaço aqui: em carnes e laticínios, diferenças de cor, odor ou textura podem indicar risco sanitário, não apenas imperfeição estética.
Um avanço incompleto
Em síntese, a Lei 15.224/2025 é um avanço inegável: cria um marco nacional, reduz o medo da responsabilização, dá legitimidade às doações e valoriza a solidariedade. No entanto, quando o tema é proteína animal, os entraves permanecem significativos: cadeia de frio onerosa, prazos de validade curtos, inspeção obrigatória e exigências de rastreabilidade tornam a doação ainda um processo restritivo.
Será preciso ir além. Regulamentar protocolos específicos para doação de produtos de origem animal, oferecer incentivos fiscais e logísticos e estruturar parcerias público-privadas para apoiar a cadeia do frio são medidas urgentes para transformar esse setor. Afinal, o desperdício de carne e derivados, de altíssimo valor econômico e nutricional, é um desperdício duplamente injusto: para quem perde a chance de doar e, sobretudo, para quem deixa de receber.
*Pedro Szajnferber De Franco Carneiro é advogado, especialista em Direito Ambiental pela FGV/SP e Universidade de São Paulo, MBA em ESG pelo IBMEC.
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